Marco Antonio Sundfeld da Gama1 e Rosemar Antoniassi2
1Coordenador do subcomitê brasileiro de Nutrição e Saúde da FIL-IDF e pesquisador da Embrapa Gado de Leite
2Membro do subcomitê brasileiro de Nutrição e Saúde da FIL-IDF e pesquisadora da Embrapa Agroindústria de Alimentos
Todo mundo sabe que gordura do leite, por ser predominantemente saturada, eleva os níveis plasmáticos de colesterol e, consequentemente, o risco de doenças cardiovasculares como infarto e derrame. Também não é nenhuma novidade que a gordura do leite, como as gorduras em geral, apresenta maior teor energético do que carboidratos e proteínas (9 kcal/g vs. 4 kcal/g) e, portanto, sua ingestão resulta em um consumo excessivo de calorias, aumentando o risco de obesidade. Além do mais, ninguém discute a velha máxima de que “você é o que você come”, ou seja, a gordura engorda. Tudo isso está mais do que comprovado, correto?
Se a sua resposta é um inequívoco “sim”, talvez seja prudente dar uma lida com calma no que dizem os principais estudos sobre o tema publicados pelos melhores grupos de pesquisa do mundo:
- A gordura do leite de ruminantes (vacas, cabras, ovelhas e búfalas) é a fonte de gordura mais complexa da dieta humana, como mais de 400 tipos de ácidos graxos, alguns não encontrados em outros alimentos, como no caso do ácido butírico, um ácido graxo saturado de cadeia curta com propriedades benéficas à saúde. Essa natureza complexa e singular da gordura do leite é consequência das particularidades do sistema digestivo e do metabolismo mamário dos ruminantes. Embora os ácidos graxos saturados sejam maioria (60-70% do total), os mesmos diferem amplamente quanto ao tamanho (curta, média e longa, com número par ou ímpar de carbonos) e forma da cadeia (linear ou ramificada). Essa peculiaridade da gordura do leite é de suma importância do ponto de vista nutricional, uma vez que ácidos graxos saturados diferentes apresentam efeitos biológicos distintos, incluindo sobre biomarcadores de risco cardiovascular como colesterol-LDL, colesterol-HDL, apolipoproteínas, triglicerídeos, etc. Em outras palavras, é preciso levar em conta o efeito conjunto desses ácidos graxos saturados para poder predizer o efeito da ingestão da gordura do leite sobre o risco de doenças cardiovasculares. Apenas para exemplificar, os ácidos graxos saturados encontrados em maiores quantidades na gordura do leite são os ácidos palmítico (C16:0), mirístico (C14:0) e esteárico (C18:0). Os dois primeiros aumentam a concentração plasmática de colesterol-LDL (um dos inúmeros biomarcadores de risco cardiovascular) quando substituem isoenergeticamente carboidratos na dieta, ao passo que o ácido esteárico não apresenta efeito sobre esse biomarcador. No entanto, os ácidos palmítico e mirístico também aumentam os níveis plasmáticos de colesterol-HDL, um efeito considerado benéfico à saúde cardiovascular. A história toda fica ainda mais interessante quando se descobre que o colesterol-LDL está presente no sangue em duas formas principais: como partículas pequenas e densas, e como partículas grandes e leves. As últimas, que são as que aumentam predominantemente em resposta à ingestão de gorduras saturadas, apresentam baixo potencial aterogênico por serem menos susceptíveis à oxidação.
- Revisões sistemáticas e meta-análises de estudos prospectivos (alguns utilizando as concentrações plasmáticas dos ácidos graxos C15:0 e C17:0 como biomarcadores da ingestão da gordura do leite em vez de estimativas baseadas em questionários) têm mostrado que o consumo de produtos lácteos com teores regulares de gordura (“full fat”) não aumentam o risco de doenças cardiovasculares, e estão inversamente associados com o risco de diabetes do tipo-2. Esses resultados são consistentes com uma série de relatos na literatura indicando que a ingestão de produtos lácteos “full fat”, embora normalmente resulte em aumento dos níveis plasmáticos de colesterol-LDL, também estão associados à elevação do colesterol-HDL, redução dos triglicerídeos e melhora da sensibilidade dos tecidos à insulina. Estes achados indicam, por sua vez, um menor risco de síndrome metabólica, que é reconhecidamente um dos principais fatores de risco para o desenvolvimento de diabetes do tipo 2 e doenças cardiovasculares.
- Uma recente revisão sistemática de ensaios clínicos mostrou que a ingestão de produtos lácteos, especialmente os fermentados, exerce uma ação anti-inflamatória em indivíduos não alérgicos à proteína do leite, sendo essa resposta observada tanto em indivíduos consumindo produtos “low fat” quanto “full fat”. Como uma inflamação crônica de baixo grau é, reconhecidamente, um dos fatores envolvidos no desenvolvimento de diversas doenças crônicas, os resultados dessa revisão se somam às evidências crescentes indicando que a ingestão de produtos lácteos, independentemente do seu teor de gordura, não aumenta o risco de doenças cardiovasculares.
- Outro aspecto importante a ser considerado nos estudos de nutrição humana é que a gordura saturada não é ingerida isoladamente, mas como parte de uma matriz alimentar que contém outros tipos de ácidos graxos (ex.: monoinsaturados, poli-insaturados, com duplas ligações do tipo cis ou trans, etc.) e outros nutrientes (ex.: proteína, minerais, etc.) cujas interações determinarão, no final das contas, o efeito de um determinado alimento sobre a nossa saúde. No caso dos produtos lácteos, esse efeito é comumente referido como “efeito da matriz láctea”. A gordura do leite, por exemplo, é fonte de diversos ácidos graxos bioativos com propriedades benéficas à saúde, como o ácido oleico, o ácido α-linolênico, o ácido vacênico e o ácido rumênico (CLA cis-9, trans-11). O ácido oleico, por exemplo, principal componente do azeite de oliva (um dos principais ingredientes da aclamada “dieta do Mediterrâneo”), representa 20-25% da gordura do leite, informação que infelizmente parece ser desconhecida por grande parte dos médicos e nutricionistas. Digno de nota, os teores destes ácidos graxos bioativos podem ser aumentados, em maior ou menor grau, por meio da manipulação da dieta dos animais, e essa tem sido uma linha ativa de pesquisa na Embrapa Gado de Leite na última década, com resultados promissores tanto em estudos com modelo animal quanto em humanos. A gordura do leite é ainda fonte natural de outros compostos bioativos de interesse à saúde como carotenóides, tocoferóis e alguns componentes da membrana do glóbulo de gordura. Esses últimos, embora representem uma pequena fração da gordura do leite, apresentam importância nutricional muito maior do que se imaginava. Nos estudos em que foram avaliados os efeitos de diferentes matrizes lácteas sobre o risco de doenças cardiovasculares e diabetes do tipo 2, os resultados observados apontam para efeitos notadamente benéficos dos produtos fermentados como iogurtes e queijos, sugerindo que ao menos parte do efeito observado pode ser atribuído à modulação da microbiota intestinal, um área de pesquisa que tem atraído grande interesse da comunidade científica nos últimos anos.
- A gordura do leite contém, naturalmente, em torno de 3 a 4 % de ácidos graxos trans, aos quais têm sido atribuídos efeitos deletérios à saúde. No entanto, assim como demonstrado para os ácidos graxos saturados, sabe-se atualmente que os ácidos graxos trans não são iguais quanto aos seus efeitos biológicos. No caso da gordura do leite, a maior parte dos ácidos graxos trans é representada pelos ácidos vacênico (C18:1 trans-11) e rumênico (CLA cis-9, trans-11), cujos efeitos benéficos à saúde têm sido demonstrados em diversos estudos com animais. Em estudos com humanos, não há evidência de que a ingestão de quantidades moderadas (até 4 g/dia) de gorduras trans de origem láctea tenha qualquer efeito deletério à saúde cardiometabólica. Esse conjunto de evidências serviu de base para que, recentemente, a ANVISA isentasse as gorduras trans de origem láctea para fins de rotulagem nutricional. Não menos importante, o reconhecimento de que determinados ácidos graxos trans encontrados naturalmente na gordura do leite exercem efeitos benéficos à saúde têm motivado inúmeras pesquisas buscando elevar os teores desses compostos no leite por meio do fornecimento de dietas específicas aos animais.
- Em relação à obesidade, as evidências acumuladas nos últimos anos indicam que nem todas as calorias são iguais. Em outras palavras, a ingestão de um mesmo número de calorias a partir de dietas com diferentes composições nutricionais exercem efeitos distintos sobre o acúmulo de gordura corporal. Por exemplo, uma dieta com 2.500 kcal oriundas majoritariamente de alimentos com elevado teor de gordura parece ser bem mais eficaz em prevenir um ganho excessivo de peso ao longo do tempo do que uma dieta com o mesmo número de calorias provenientes de alimentos ricos em carboidratos refinados e açúcar. Isso ocorre porque diferentes nutrientes afetam de maneira distinta as vias metabólicas de regulação da fome/saciedade, a lipogênese nos tecidos hepático e adiposo, a microbiota intestinal e o gasto energético. Como diz um destacado cientista em um artigo comparando os efeitos da glicose com os da frutose: “isocalóricos, mas não isometabólicos”. Portanto, não são surpreendentes os resultados de diversos estudos indicando um menor risco de obesidade em indivíduos consumindo leite e produtos lácteos “full fat”, especialmente levando-se em conta que a indústria normalmente adiciona açúcar no lugar da gordura que foi removida durante a fabricação dos produtos “low fat” e “fat free”. Além disso, a dieta do Mediterrâneo, que contém um teor relativamente elevado de gordura total (30-35% das calorias ingeridas) e as dietas “low carb”, ricas em gordura, também têm se mostrado eficazes na perda ou prevenção do ganho de peso, mesmo em condições de consumo irrestrito de calorias.
CONCLUSÕES
As evidências científicas acumuladas na última década não suportam as premissas descritas no início desse artigo, que constituem a fundamentação das recomendações dietéticas, vigentes por quase cinco décadas, de se consumir leite e produtos lácteos “low fat” ou “fat free” para reduzir o risco de doenças cardiovasculares e obesidade. Os estudos de metabolismo e as meta-análises de estudos prospectivos e ensaios clínicos controlados têm mostrado que, na verdade, a suposta associação entre a ingestão de gordura saturada e o risco de doenças cardiovasculares não é tão simples como se imaginava, e que tratar a obesidade como uma mera questão de balanço calórico pode ser equivocado. Essas evidências, produzidas pelos principais grupos de pesquisa do mundo, foram reconhecidas pela Anvisa quando para fins regulatórios e isentou o leite de todas as espécies de animais mamíferos, leite em pó, leites fermentados e queijos da lista de alimentos nos quais a rotulagem nutricional não se aplicará, para fins de rotulagem nutricional frontal . Tais evidências não podem continuar a ser desconhecidas ou ignoradas nos consultórios e, principalmente, na elaboração das políticas públicas de saúde. A nossa saúde e nosso paladar agradecem.
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